Ecofeminismo e Ciência em Vandana Shiva
O modo de produção desenvolvido pelo Ocidente está alicerçado na monocultura. Essa forma de produção corresponde a um modo de pensar específico, constituindo uma das principais ameaças à diversidade e à vida no planeta. No capitalismo globalizado, os modos de produção da agroindústria se baseiam na monocultura e na devastação do meio ambiente. A natureza é transformada em mercadoria que propicia o acúmulo de capital. Esse modo de produção se reflete em modelos epistemológicos caracterizam-se como monoculturas da mente.
Vandana Shiva (2003, p. 15) defende a diversidade tanto no âmbito da natureza quanto na dimensão cultural. Neste sentido, “as monoculturas são uma fonte de escassez e pobreza, tanto por destruir a diversidade e as alternativas quanto por destruir o controle descentralizado dos sistemas de produção e consumo” (SHIVA, 2003, p. 17).
Os saberes tradicionais na agricultura podem propiciar o respeito à diversidade existente na natureza. A riqueza desses saberes tem sido apropriada pelo sistema capitalista quando estão em jogo interesses econômicos. É o caso do interesse em sementes preservadas por comunidades tradicionais, ervas medicinais e produtos agrícolas originários de saberes ancestrais de populações indígenas e quilombolas em países como o Brasil. A baunilha do cerrado é um exemplo. Iguaria produzida por meio de conhecimentos tradicionais e sementes preservadas, transmitidas de geração em geração por antepassados africanos na comunidade quilombola Kalunga, da região Centro-Oeste do Brasil, a baunilha do cerrado foi apropriada por um empresário paulista da alta culinária por interesses comerciais. O modo de subjetivação baseado na monocultura se constitui como uma forma de legitimação da destruição da diversidade, justificada com a retórica do progresso e do crescimento econômico. Por outro lado, um pensamento fundado na diversidade teria mais possibilidade de promover um equilíbrio entre o Norte e o Sul, pois somente “um sistema baseado na diversidade respeita os direitos de todas as espécies e é sustentável” (SHIVA, 2003, p. 19). Assim, desenvolve-se a monocultura mental como modo de subjetivação. Esse modo de pensar e agir incentiva o modelo de produção da monocultura, devastando o meio ambiente e destruindo a diversidade. Para possibilitar a existência das futuras gerações faz-se necessária uma mudança nos modos de pensar, ser e viver. É preciso considerar a diversidade da natureza, ou a biodiversidade. Neste sentido, “a diversidade, enquanto maneira de pensar, enquanto maneira de viver, é necessária para superar o empobrecimento gerado pelas monoculturas mentais” (SHIVA, 2003, p. 19). Saberes tradicionais e locais que têm como princípio o respeito à biodiversidade tornam-se obstáculos para a monocultura da mente. Há formas de eliminação do saber local. Uma das estratégias consiste na negação de saberes por meio da invisibilidade, do ocultamento e do silenciamento. O modo de saber ocidental é caracterizado como universal. Segundo Shiva (2003, p. 21), “o sistema dominante também é um sistema local, com sua base social em determinada cultura, classe e gênero. [...] Nascidos de uma cultura dominadora e colonizadora, os sistemas modernos de saber são [...] colonizadores”. Saber e poder estão interligados, ou entrelaçados para exploração do meio ambiente e da natureza, permitindo a manutenção e a expansão do sistema capitalista de produção e consumo. O modo de produção do saber no sistema capitalista reproduz as desigualdades e as formas de dominação. |
Outra estratégia de negação do saber local consiste na sua definição como conhecimento “primitivo” e “anticientífico”. De maneira análoga, “o sistema ocidental é considerado o único ‘científico’ e universal” (SHIVA, 2003, p. 23). A afirmação da superioridade do sistema de saber ocidental tem como base o positivismo e os princípios metodológicos ligados à verificação, observação e comprovação. Além dessas correntes teóricas, o sistema de saber ocidental possui uma história de produção discursiva que eclipsou o saber feminino e os saberes locais.
O positivismo lógico sustenta que o discurso científico é o único capaz de descrever a realidade com base na verificabilidade e na comprovação de hipóteses. Autores como Thomas Kuhn criticaram a verificabilidade das teorias científicas. Contudo, mantiveram a concepção de superioridade do modelo da ciência ocidental. “A ciência ocidental moderna não deve ser avaliada, deve ser simplesmente aceita” (SHIVA, 2003, p. 24). O saber produzido com base no modelo da ciência moderna é sacralizado, elevando-se a uma forma de conhecimento superior, universal e inquestionável. Saberes locais passam a ser classificados como inferiores, primitivos, mitológicos, já que não adotam os métodos construídos pelo modelo da ciência ocidental. Em síntese, “o saber científico dominante cria uma monocultura mental ao fazer desaparecer o espaço das alternativas locais [...]” (SHIVA, 2003, p. 25). Para os sistemas de saber tradicionais, floresta e campo integram um mesmo ecossistema. Diferentemente, no sistema científico ocidental de produção do saber, há uma separação entre a floresta e a agricultura. Para esse modelo de conhecimento, a floresta fornece madeira como mercadoria de valor comercial por meio da silvicultura. Dessa maneira, justifica-se a necessidade de agressão e devastação da floresta para atender as demandas de consumo e propiciar o acúmulo de capital. Nos saberes locais e tradicionais aparece uma visão diferenciada, na qual a floresta e o campo compõem o mesmo ecossistema. Esse ecossistema é imprescindível para a manutenção da existência das espécies animais e vegetais. “A maioria dos sistemas locais de saber tem-se baseado na capacidade que as florestas têm de manter a vida, não no valor comercial de sua madeira” (SHIVA, 2003, p. 27). O modo de subjetivação baseado na monocultura mental vê a floresta como mais uma mercadoria. Com a silvicultura científica, a floresta passa a ser vista como fornecedora de madeira para a indústria e o consumo. A função da floresta é fornecer madeira para atender interesses comerciais.
Em consequência, a floresta se reduz a uma mercadoria que serve para atender os interesses econômicos do sistema capitalista de consumo e lucro. A monocultura da mente produz discursos de verdade para fundamentar a silvicultura como ciência da exploração da natureza. "O reducionismo do paradigma da silvicultura científica criado pelos interesses industriais e comerciais violentam tanto a integridade das florestas quanto a integridade das culturais florestais que precisam das florestas e de sua diversidade [...]" (SHIVA, 2003, p. 32). Silvicultura e agricultura são separadas e ambas servem para atender os interesses econômicos de acúmulo de capital. A floresta é concebida do mesmo modo que a linha de montagem de uma indústria, ou uma mina de carvão, ou minério de ferro. Sua única atribuição volta-se para a exploração de madeira para gerar lucro e acumular capital. “Em lugar do pluralismo cultural e biológico, a fábrica produz monoculturas sem sustentabilidade na natureza e na sociedade” (SHIVA, 2003, p. 33). Segundo Shiva (2003), os confrontos se acentuam entre os dois paradigmas. Nos modos de saber tradicionais, a floresta é compreendida como fonte de alimentos, água e ar puro, recursos naturais imprescindíveis para a subsistência da comunidade. Por sua vez, o paradigma da ciência dominante no sistema capitalista enxerga a floresta como uma linha de montagem que movimenta o mercado e possibilita o ganho de capital. “O interesse comercial tem como principal objetivo maximizar o valor de troca com a extração de espécies comercialmente valiosas” (SHIVA, 2003, p. 34). A exploração da floresta por meio da silvicultura e da mineração tem como consequência a degradação do meio ambiente. O ecossistema florestal é devastado. Acidentes como os ocorridos no Brasil na região de Minas Gerais em Mariana (MG) e Brumadinho (MG) mostram as consequências da exploração desenfreada do ecossistema. Além das mortes provocadas pelo rompimento das barragens nesses locais, rios e açudes que serviam para a subsistência de comunidades foram contaminados com rejeitos de minério. O paradigma da silvicultura reduz a floresta a uma fonte fornecedora de matéria prima para o mercado. A ordem na floresta seria estabelecida de acordo com o modelo de racionalidade da ciência. Em sua condição natural, a floresta é considerada um caos. Por fim, somente a ciência poderia impor uma ordem por meio da derrubada de árvores e do reflorestamento artificial. “A administração ‘científica’ das florestas tem [...] uma clara tendência antinatureza e uma inclinação evidente pelos objetivos industriais e comerciais, aos quais a floresta natural deve ser sacrificada” (SHIVA, 2003, p. 37). Destruir a diversidade é necessário para estabelecer uma ordem racional, de acordo com a administração “científica” da floresta. “A riqueza da natureza, caracterizada pela diversidade, é destruída para criar riqueza comercial caracterizada pela uniformidade” (SHIVA, 2003, p. 38). O interesse em espécies que propiciem lucros leva empresas consultoras a considerarem que determinadas espécies existentes na floresta são ervas-daninhas que precisam ser eliminadas.
Nos discursos da administração científica das florestas, espécies importantes para a alimentação, ricas em vitaminas e nutrientes, que representam riscos a produtos de interesse do mercado, passam a ser caracterizadas como ervas-daninhas ou “lixos”. Com base no seu paradigma científico tido como universal, o patriarcado capitalista desconsidera “o valor do saber local”, declarando “que as plantas úteis para as comunidades locais são ‘ervas-daninhas’” (SHIVA, 2003, p. 41). Se determinada espécie não atende aos interesses comerciais do sistema capitalista, deve ser eliminada. Isso posto, a destruição da diversidade biológica baseia-se na lógica comercial e no valor do lucro. “A perspectiva unidimensional do saber dominante está baseada nas ligações íntimas da ciência moderna com o mercado” (SHIVA, 2003, p. 42). Com a engenharia genética alteram-se os ecossistemas em função dos interesses comerciais de ganhos de capital. “A diversidade natural nativa é substituída pelas monoculturas de árvores e safras agrícolas” (SHIVA, 2003, p. 43). De acordo com a lógica capitalista da agroindústria, a exploração da madeira que gera lucro é o que interessa na floresta. As outras espécies devem ser eliminadas. Como sugere Vandana Shiva (2003, p. 44), a “filosofia de livre plantio encaixa-se no paradigma reducionista de produzir madeira para o mercado”, separando as espécies com valor agregado. O modelo reducionista estabelece uma separação entre agricultura, silvicultura, modelo administrativo dos recursos hídricos e as sementes de interesse comercial. Shiva (2003) cita um projeto de silvicultura social na comunidade de Kolar de Karnataka, na Índia, que contou com o financiamento do Banco Mundial para a substituição de espécies variadas pelo eucalipto. Essa alteração causou danos para o ecossistema local e a produção de alimentos anteriormente consumidos pela comunidade. “O eucalipto destruiu o ciclo da água das regiões áridas em virtude de sua grande demanda de água e sua incapacidade de produzir húmus, que é o mecanismo da natureza para conservar a água” (SHIVA, 2003, p. 46). A escolha pelo eucalipto se relaciona com o interesse comercial de produção, tendo a silvicultura como modelo de administração científica para o reflorestamento. De acordo com Shiva (2003, p. 56), “na agricultura a mentalidade reducionista criou a safra de monoculturas”. Para Shiva (2004, p. 2), “as economias de subsistência que satisfazem as necessidades básicas mediante o autoabastecimento não são pobres no sentido de estarem privadas de algo”. Não é possível considerar pobres as comunidades que não participam da “economia de mercado”, ou que não consomem seus produtos. “A subsistência, percebida culturalmente como pobreza, não necessariamente implica em uma baixa qualidade material de vida” (SHIVA, 2004, p. 2). A alimentação em uma comunidade que produz seus próprios alimentos de forma orgânica é mais nutritiva do que o consumo alimentar proporcionado pela indústria. O modelo de produção capitalista considera “atrasado” e “improdutivo” o modo de subsistência das “economias baseadas em tecnologias indígenas” (SHIVA, 2004, p. 3). Shiva (2004) defende “a recuperação do princípio feminino” para superar o patriarcalismo que orienta o modelo de produção capitalista voltado para o acúmulo de capital. Esse modelo de produção gera a desigualdade e a pobreza. Por meio do “princípio feminino” como “projeto político, ecológico e feminista” tornar-se-ia possível a preservação da vida e da diversidade (SHIVA, 2004, p. 3). O modelo de produção da monocultura promove a destruição da natureza, suprimindo a diversidade. “É uma guerra contra a natureza, as mulheres, as crianças e os pobres” (SHIVA, 2004, p. 4). Abrange, portanto, uma guerra contra a vida e a existência da diversidade no planeta. A ideologia neoliberal coloca o comércio e a economia acima da vida. Há uma negação da existência em favor do acúmulo de capital. No momento em que a Covid 19 se tornou uma pandemia, lideranças mundiais como Donald Trump nos Estados Unidos, Boris Johnson no Reino Unido e Jair Bolsonaro no Brasil defenderam a continuidade das atividades econômicas. Com o aumento do número de casos nos Estados Unidos, em toda a Europa e no Reino Unido, a instauração do caos no sistema de saúde de Nova Iorque, Donald Trump e Boris Johnson recuaram diante de um inimigo invisível e avassalador. A cena de corpos amontoados retirados de hospitais norte-americanos mudou o posicionamento do presidente ultraconservador neoliberal dos Estados Unidos, que passou a defender as medidas de isolamento. O vírus infectou príncipes e lideranças políticas como o próprio Boris Johnson, obrigando o mundo capitalista a parar o seu sistema de produção. No Brasil, o presidente da época, Jair Bolsonaro, defensor do conservadorismo neoliberal radical, continuou insistindo que a economia era mais importante do que a vida de milhares de pessoas. Shiva (2004, p. 4) já havia alertado para a possibilidade de enfermidades que poderiam ser “transmitidas aos seres humanos” como resultantes do predomínio da ideologia e dos interesses econômicos do “sistema industrial globalizado”. A globalização capitalista neoliberal possui uma ideologia genocida e suicida, direcionada por interesses puramente econômicos de acúmulo de capital. O modelo de patentes é outro exemplo de transformação do conhecimento em mercadoria para comercialização da saúde por empresas multinacionais. Patentes de remédios beneficiam economicamente somente a indústria farmacêutica. Um exemplo é o custo de procedimentos terapêuticos para enfermidades como a AIDS, cujo o tratamento fica em torno de 15 mil dólares pela medicina patenteada, enquanto na medicina genérica produzida na Índia e no Brasil este valor se reduz ao custo de 250 a 300 dólares. Índia, Brasil e África do Sul são acusadas de prejudicarem as patentes, tendo que responder a tribunais internacionais da Organização Mundial do Comércio por permitirem em sua legislação a produção de medicamentos genéricos com baixo custo para as pessoas. No contexto pós-colonial, conhecimentos de comunidades indígenas e tradicionais localizadas no Terceiro Mundo são patenteados, apropriados e monopolizados por corporações internacionais. Para Shiva (2004, p. 5), “as patentes baseadas na biopirataria são imorais e ilegais”, pois “violam princípios universais de respeito à vida e à integridade dos sistemas cognitivos de uma cultura”. A cooperação, a generosidade e a solidariedade correspondem a princípios que podem orientar as sociedades para uma vida comunitária e sustentável. Shiva (2004, p. 5) retoma concepções associadas ao feminino como a proteção, o respeito, o bem-estar das pessoas, a preservação da terra e da diversidade, associando-as a uma noção de humanidade.
Em que sentido o modelo de produção desenvolvido pelo ser humano pode conduzi-lo ao próprio extermínio da sua espécie? Até que ponto esse modelo de produção constitui um modo de negação da vida? “A democracia da terra se baseia em criar economias vivas que protejam a vida na terra e proporcionem necessidades básicas e segurança econômica para todo mundo” (SHIVA. 2004, p. 7). Shiva (2004, p. 7) defende a “democracia da terra” como um projeto político que propicia a garantia do “direito fundamental de existir a todas as espécies”. De acordo com essa perspectiva, o reconhecimento da diversidade consiste em um princípio fundamental para a preservação da vida e o desenvolvimento sustentável no mundo. “A manutenção da vida em sua diversidade e integridade é a base das relações na democracia da terra” (SHIVA, 2004, p. 7). Há uma concepção holística que pode ser comparada com o pensamento filosófico de Hildegarda e mitologias e saberes ancestrais de comunidades tradicionais e povos indígenas. As noções de complementaridade e integração entre o ser humano e a natureza perpassam pela ideia de democracia da terra. É uma noção de interligação, integração e complementaridade entre o ser humano, a natureza e o cosmos. “A democracia da terra restabelece a noção de seres humanos como membros da família terrestre e as culturas diversas no mosaico da diversidade cultural” (SHIVA, 2004, p. 7). A partir de uma perspectiva de integralidade, o valor da vida revela-se como um princípio da existência no planeta. Shiva (2004) mostra a necessidade do respeito não somente da diversidade biológica, mas também da diversidade cultural. “Quando reconhecemos o valor intrínseco e a importância de cada forma de vida, prosperam a diversidade biológica e a diversidade cultural” (SHIVA, 2004, p. 8). O pensamento filosófico de Vandana Shiva serve como referência para o ecofeminismo, uma “escola de pensamento que tem orientado movimentos ambientalistas e feministas, desde a década de 1970” (SILIPRANDI, 2000, p. 61). Essa corrente teórica surge por volta da década de 1990. Eventos como a Eco-92, no Rio de Janeiro, bem como a crítica ao modelo de consumo dos países do Norte, que aumenta a pobreza no Sul, são relevantes para as reflexões propostas pelo ecofeminismo. Para essa corrente teórica, o pensamento ocidental hegemônico do ponto de vista econômico exerce a dominação das mulheres e da natureza para o acúmulo de capital. Do ponto de vista político, o ecofeminismo mostra como se constituíram as concepções de identificação entre a mulher e a natureza e do homem com a cultura. Os discursos da razão androcêntrica sustentam que a cultura possui um valor superior e a natureza precisa ser dominada. A cultura, nos discursos da razão androcêntrica e patriarcal, consiste em uma forma de conhecimento que serve para o domínio da natureza (SILIPRANDI, 2000). Neste sentido, políticas científicas e tecnológicas reforçam o modelo econômico e político do pensamento ocidental hegemônico, mantendo os mecanismos de dominação da racionalidade androcêntrica. Desconsidera-se a história de “exclusão das mulheres do mundo do conhecimento ‘científico’” (SILIPRANDI, 2000, p. 63). Entre as concepções do ecofeminismo destacam-se a defesa da democracia direta, a economia de subsistência, o uso de tecnologias não danosas ao meio ambiente e a “superação da dominação patriarcal nas relações entre os gêneros” (SILIPRANDI, 2000, p. 63). Há uma identificação entre a “utopia feminista” e a ecologia socialista no ecofeminismo. Torna-se relevante o debate entre a tradição igualitarista e o feminismo da diferença. A tradição igualitarista defende a universalidade do princípio da dignidade humana e a defesa dos direitos civis das mulheres, ressaltando a importância da autonomia e emancipação feminina. Por sua vez, o feminismo da diferença questiona o domínio masculino no mundo público, alicerçado pela cultura patriarcal. Para o ecofeminismo, as mulheres possuem um modo de ser diferenciado ligado à reprodução da vida, sendo essencial para a preservação da natureza a valorização e a incorporação do modo de ser feminino. O princípio feminino, originário da cultura hindu, é ressaltado por Vandana Shiva (1991). Para o ecofeminismo, esse princípio propicia a compreensão das relações de dominação impostas pelas raízes da racionalidade androcêntrica e patriarcal. Práticas de violência com relação às mulheres e à natureza possuem uma origem material. Como exemplos mencionam-se os modos de dominação que predominam na Índia. O país tem um desenvolvimento baseado na destruição da natureza, a qual aniquila as condições de sobrevivência dos seres humanos. A origem dos problemas ambientais encontra-se no modelo de desenvolvimento capitalista global, que considera o meio ambiente como “recurso” que está à disposição da humanidade. Para a perspectiva desenvolvimentista, o meio ambiente apresenta as seguintes características: inércia, passividade, uniformidade e inferioridade. Por essas razões, a natureza precisa ser explorada comercialmente para o acúmulo de capital. A cultura patriarcal, racista e androcêntrica excluiu o conhecimento ecológico de mulheres ligadas a comunidades tradicionais na agricultura. Esse saber direciona-se pela sustentabilidade, a diversidade e a busca da subsistência sem a necessidade da produção de excedentes. No entanto, no capitalismo global prevalece a monocultura da mente, símbolo do paradigma desenvolvimentista direcionado pela necessidade de exploração do meio ambiente para obtenção de lucro. Com a monocultura enquanto modelo de produção, os modos de cultivo mais tradicionais são substituídos por modelos de intervenção na natureza. Prakriti é o princípio feminino de criação presente na natureza, de acordo com a cosmologia hindu. Esse princípio possibilita a integração entre os seres. A subjugação do princípio feminino origina os desequilíbrios no meio ambiente. É preciso conceber a natureza “como um organismo vivo” (SHIVA, 1991, p. 77). Shiva (1991) questiona o modelo de desenvolvimento do capitalismo e defende a biodiversidade. Há críticas em relação ao ecofeminismo de Shiva. Entre essas críticas aponta-se a visão essencialista da mulher, bem como a ideia que as relações tradicionais também são caracterizadas por formas de opressão e dominação das mulheres (SILIPRANDI, 2000). Problemas ambientais são apontados por organizações não-governamentais vinculados ao ecofeminismo, como a degradação do meio ambiente, a salinização, o desmatamento, a erosão, a “destruição da camada de ozônio, aquecimento do planeta decorrente da emissão de CO2” e as alterações climáticas (SILIPRANDI, 2000, p. 67). A manipulação genética dos alimentos ameaça o direito a formas saudáveis de alimentação. O ecofeminismo tem importância significativa para a discussão acerca das “implicações que determinadas atividades econômicas têm sobre as condições de vida e trabalho das mulheres [...]” (SILIPRANDI, 2000, p. 68). Questiona-se, sobretudo, a visão de desenvolvimento econômico voltada para o lucro e o aumento da produtividade. Para o ecofeminismo, é imprescindível a defesa da igualdade de gêneros e o incentivo à participação de mulheres nos espaços de poder e na tomada de decisões políticas. Há uma conexão entre a mulher e a natureza. Por outro lado, a razão androcêntrica exclui as mulheres da cultura. A associação entre a mulher e a natureza é evidenciada pelo ecofeminismo. Na perspectiva de Regina Ciommo (2003, p. 424), o ecofeminismo revela-se como a “terceira onda do feminismo”. Neste sentido, o ecofeminismo propõe: "[...] o reconhecimento de que, apesar de o dualismo natureza–cultura ser um produto da cultura, podemos conscientemente escolher a aceitação da conexão mulher–natureza, participando da cultura, reconhecendo que a desvalorização da doação da vida tem conseqüências profundas para a ecologia e as mulheres" (CIOMMO, 2003, p. 424). Indivíduo, sociedade e natureza formam um sistema complexo, no qual as partes interagem, formando o todo de modo interdependente. O indivíduo é visto como o sistema central enquanto a sociedade constitui o ecossistema dos seres humanos. Destacam-se, então, as características dos ecossistemas: interdependência, fluxos de energia, associação e diversidade. "A tendência da sociedade humana de impor especializações às individualidades acaba por reduzir e inibir a diversidade criada pelo seu próprio desenvolvimento. Mas a organização da diferença, no plano dos princípios sistêmicos mais gerais, cria antagonismos com potencialidade de oposição, pois as relações complementares, concorrentes e antagônicas são constitutivas dos ecossistemas" (CIOMMO, 2003, p. 425). As sociedades humanas possuem complementaridades, dissonâncias, oposições e antagonismos. Nos discursos da razão androcêntrica, a relação entre a mulher e a natureza tomou como referência concepções dualistas, hierárquicas e antagônicas. De acordo com Regina Ciommo (2003, p. 425), “conceitos antagônicos foram construídos como opostos e excludentes e foram apropriados pelo julgamento moral da lógica da dominação”. Essa lógica da dominação funda hierarquias baseadas no estabelecimento de diferenças por meio do dualismo. Atribui-se um valor superior aos seres humanos masculinos em comparação a seres humanos femininos e à natureza. Consequentemente, as mulheres e a natureza são classificadas como não humanos por carecerem de determinadas qualidades masculinas. O efeito do dualismo consiste na naturalização da dominação. Com a ligação entre a mulher e a natureza, justifica-se a necessidade de dominação e subordinação. Enfim, o modelo de humanidade institui a “masculinidade da cultura” que fundamenta a “natureza da dominação do masculino” (CIOMMO, 2003, p. 426). A ideia da existência de uma natureza feminina, reforçada pelos discursos hegemônicos da razão androcêntrica, justifica a subordinação universal das mulheres. Às mulheres cabe o cuidado com as crianças e o espaço doméstico. Esse arquétipo do mundo simbólico encontra-se no pensamento filosófico androcêntrico da Grécia antiga. Aristóteles propaga a ideia da subordinação como essência da natureza feminina. Com a hegemonia epistêmica da razão androcêntrica, o “modelo masculino para o ser humano [...] perpetua diversas formas de exclusão e desvalorização das mulheres” (CIOMMO, 2003, p. 427). "As noções dicotômicas como natureza/cultura, humano/não-humano e masculino/feminino não podem ser encerradas ou explicadas segundo teorias simplificadoras, que nos levam apenas a um impasse: igualdade sobrepondo-se aos sujeitos, diversidade entre seres humanos significando vitimização ou, ao contrário, situação privilegiada, exploração dos recursos naturais em nome da ciência, valorização da cultura em detrimento do mundo não-humano" (CIOMMO, 2003, p. 427). As diferenças precisam ser reconhecidas e respeitadas para uma conscientização acerca da noção de complementaridade entre ser humano, natureza e cosmos. É importante considerar as ideias de integração e complementaridade. Na Idade Média, Hildegarda (COSTA, 2012) defendeu a importância dessas noções. Referências: CIOMMO, Regina Célia Di. Relações de gênero, meio ambiente e a teoria da complexidade. In: Estudos Feministas, Florianópolis, 11(2), 360, 2003. COSTA, Marcos Roberto Nunes. Mulheres Intelectuais na Idade Média: Hildegarda de Bingen – Entre a Medicina, a Filosofia e a Mística. In: Trans/Form/Ação, v.35, p.187-208, 2012. SHIVA, Vandana. Abrazar la vida: mujer, ecología y supervivencia. Montevideo: Instituto del Tercer Mundo, 1991. ________. Monoculturas da mente: perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia. São Paulo: Gaia, 2003. ________. La mirada del ecofeminismo. In: Polis – Revista Latinoamericana, vol. 9, 2004. SILIPRANDI, Emma. Ecofeminismo: contribuições e limites para a abordagem de políticas ambientais. In: Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável, Porto Alegre, v.1, 2000. Observação: o presente texto foi retirado do livro Raízes da razão androcêntrica, da autoria de Guilherme Paiva de Carvalho. O livro encontra-se disponível no link: https://www.atenaeditora.com.br/catalogo/download-file/6807 |